Boletim BRICS Brasil #06 - “Nem Ocidente, nem Oriente, Sul Global”, afirma Celso Amorim sobre o BRICS
Celso Amorim é um experiente diplomata brasilerio reconhecido no Brasil e no exterior por sua atuação. Ele contou um pouco sobre a história da formação do BRICS como um foro de cooperação. Para ele, a colaboração entre os países do Sul Global é fundamental e ouvir o que eles têm a dizer é inquestionável. Ouça e saiba mais.
Repórter: O assessor-chefe da Assessoria Especial do Presidente da República, Celso Amorim, tem uma extensa carreira na diplomacia brasileira. Ele estudou no Instituto Rio Branco, centro de formação de diplomatas brasileiros, e depois concluiu pós-graduação na Academia Diplomática de Viena e na London School of Economics. Confira agora a entrevista com o diplomata Celso Amorim. Para começar a nossa conversa, gostaria que o senhor contasse um pouco da história do começo do Brics, parece que o diplomata russo e Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, teve participação na origem, assim como o presidente Lula no primeiro mandato, não é mesmo?
Celso Amorim: Eu vou contar uma história que talvez você possa aproveitar, um dia enquanto eu era presidente de uma organização internacional de saúde, o economista Jim O’Neill era ministro do Tesouro da Inglaterra. Eu sentei do lado dele em uma reunião, a propósito de um assunto de saúde depois de 15 anos da primeira vez que o termo foi usado, e falei: “poxa, que bom, estou do lado da pessoa que inventou o BRICS”. O economista disse: “sim, sim”. Aí complementei: “mas fomos nós que fizemos”.
Acho que o que está por trás do nosso agrupamento é a noção da necessidade de institucionalização das organizações do Sul Global. Naquela época não se usava muito essa expressão, mas no início da década de 2000, eu representava o governo brasileiro e o diplomata russo, Sergei Lavrov, realmente me procurou e sugeriu a criação do foro dos BRICS. Então, na verdade, quando Lavrov fez essa sugestão discutimos ali na hora aquilo e depois foi evoluindo. Fizemos uma primeira reunião de ministros, mas a primeira reunião de presidentes foi em 2009, em Ecaterimburgo, na Rússia.
E eu tenho um amigo, que foi Ministro do Exterior da Grã-Bretanha e hoje dirige uma grande organização não governamental nos Estados Unidos, que me perguntou uma vez: “Celso, por que vocês dão tanta importância ao BRICS?”. Eu respondi: “para fortalecer o G20. Parece uma contradição, mas não é. Sem o BRICS, a tendência era voltar a ter (a preponderância) do G7, o grupo com os sete países mais industrializados do mundo, mas agora como tem o BRICS, sentiram uma rivalidade e, hoje em dia, eu acho que dão mais importância ao G20 do que o G7”.
Por exemplo, todo mundo sabe que a reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) é algo muito complexo, vai demorar para acontecer. Mas existe a compreensão de que não se pode ter uma organização internacional sem a participação ativa de países em desenvolvimento. Então, se fosse o Brasil sozinho ou mesmo a China com todo o poder dela sozinha não ia ter a influência que esse conjunto de países do BRICS tem, que aliás vários deles são membros do G20 também.
Repórter: Qual o papel do BRICS na construção de uma ordem internacional mais justa e como o foro pode ajudar a fortalecer a voz do Sul Global nesse processo?
Celso Amorim: A ideia do BRICS é de um grupo de cooperação entre grandes países em desenvolvimento que podem, inclusive, estudar uma cooperação em energia, na área monetária, em muitas outras áreas e assuntos, e até na área de paz e segurança que é mais complexa. Isso é muito importante porque mostrou para os grandes países ocidentais capitalistas que eles não podem ditar as regras, podem até ter iniciativas, mas vão ter que discutir conosco.
Nós podemos fazer uma ponte para fortalecer o papel dos países em desenvolvimento nas áreas de sustentabilidade ambiental, mudança do clima, financeira e econômica, e evitar que nós sejamos vítimas de manobras financeiras que possam nos prejudicar. Com o BRICS, a gente também não fica dependente de um único país ou grupo de países. Por exemplo, é muito bom que tenha sido concluído o acordo com a União Europeia, mas você não pode ficar só com os países europeus. Sem falar no fato de que a existência do BRICS contribui para o reforço das relações bilaterais entre os países. Nossa relação com a China, por exemplo, aumentou muito porque a China cresceu muito, mas temos hoje uma familiaridade que eu não sei se teria se não fosse pelo BRICS.
Eu acho que se você abrir, digamos assim totalmente, quase todos os países em desenvolvimento vão querer ser membros do BRICS e isso revela a importância que o grupo tem.
Repórter: Alguns analistas dizem que o BRICS é uma aglomeração de países antiocidente. O que o senhor acha dessa avaliação?
Celso Amorim: O Brasil tem muitos valores ocidentais e também tem uma cultura que se deve aos indígenas, aos africanos, aos imigrantes dos mais variados países, como os japoneses. Então, eu acho que o Brasil tem essa mescla que torna o país extremamente atraente. Eu acabei de ler agora um livro do Stefan Zweig, “O tempo em que eu vivi”, tem um capítulo em que o escritor fala sobre como nosso país é aberto a novas experiências, novas culturas, sem criar as dificuldades e as rivalidades que na época do autor existiam na Europa. Então, o Brasil acima de tudo é um país que quer defender sua posição e a dos países em desenvolvimento sem agressões, sem militarismo.
E nós tivemos, por exemplo, acordos importantes com os Estados Unidos na área de trabalho e começamos a fazer na área de energia, por outro lado, temos um enorme número de projetos com a China. Não são muitos países que têm essa capacidade de diálogo, haverá alguns, mas não muitos. Como é que se pode dizer que o Brasil é contra o ocidente se acabamos de concluir um acordo na área econômica com a União Europeia? Não tem cabimento. Agora, ter uma subordinação a um determinado país líder isso nós não queremos. Nem Ocidente, nem Oriente, Sul Global (é o que defendemos).
E a liderança do presidente Lula, nesse contexto, é indiscutível. Por exemplo, na questão de conflitos entre países, o presidente Lula é um pacifista ativo, não só em teoria, ele age para contribuir para a paz. Quantos países tiveram a capacidade de dialogar com a Rússia e a Ucrânia? A pedido do presidente Lula, eu fui falar com o presidente russo Vladimir Putin e, em poucas semanas, fiz uma longa viagem incluindo uma parte de trem dentro da Ucrânia para falar com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. E nós somos procurados, não é uma coisa que a gente se voluntaria, mas muitas vezes nós somos procurados. Somos um país da paz, o Brasil odeia a guerra. Quantos países nós temos no mundo que têm fronteiras com 10 outros e a última guerra foi há mais de 150 anos? É o caso do Brasil.
Eu acho que o BRICS tem que ter uma abertura e os países em desenvolvimento tem que se sentir representados, mas operacionalmente não pode se expandir indefinidamente porque para você atuar concretamente em questões importantes você tem que manter uma certa coesão. A gente não pode perder a especificidade do BRICS que é essa capacidade de agir coletivamente e de realizar uma cooperação real e não uma coisa teórica.
E minha mensagem é que o BRICS é um grupo de países em desenvolvimento que quer a prosperidade mas quer a paz também. Eu acho que a busca principal no mundo que nós estamos vivendo hoje é a busca da paz. Eu acho que o Papa Paulo 6º que disse: “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. O BRICS é o novo nome do desenvolvimento.