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A Crise do Multilateralismo: O Poder de Mudança nas mãos do BRICS

por Daniel Henrique Diniz

Foto: GettyImages
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A evolução do multilateralismo

Entendido como um modelo que orienta a cooperação entre três ou mais participantes, com base em princípios comuns e vinculativos, o multilateralismo não é novidade: desde a antiga aliança militar da Liga de Delos, passando pelo Tratado de Vestfália e o Congresso de Viena, a lógica da cooperação entre atores molda a ordem internacional. Seu ponto alto veio com a fundação da ONU, em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, quando se consolidou como motor institucional da paz e da cooperação em diversas áreas.

De lá para cá, o multilateralismo atravessou desafios e transformações. A Guerra Fria polarizou decisões; as crises do petróleo da década de 1970 mostraram a vulnerabilidade das economias interdependentes; os conflitos na Coréia e no Vietnã colocaram em xeque a autoridade da ONU; a crise asiática de 1997 expôs limitações dos organismos financeiros; e a ascensão de atores não estatais redesenhou o jogo da política global. A descolonização africana, por sua vez, multiplicou as vozes no sistema internacional, exigindo novas dinâmicas. 

Ainda assim, tudo isso mostrou que, embora passe por crises, o multilateralismo sempre é capaz de se reinventar.

A nova crise do Multilateralismo 

A crise atual, por sua vez, tem novos contornos. As instituições internacionais voltadas à garantia da paz e segurança enfrentam o dilema de lidar com ameaças globais, por meio dos princípios do direito internacional, enquanto permanecem presas a dinâmicas ultrapassadas — como mostram as tentativas frustradas de resolução do conflito Israel-Palestina desde 2023 e a estagnação do Conselho de Segurança da ONU.

No campo econômico, a adoção de uma postura unilateralista e protecionista pelos Estados Unidos — maior economia do mundo — ao instaurar uma política tarifária agressiva, semelhante à falha Lei Smoot-Hawley de 1930, afeta todo o planeta — até mesmo regiões remotas como as Ilhas Heard e McDonald.

Segundo o relatório Global Trade Outlook and Statistics da OMC, publicado em 16 de abril, essas tarifas, iniciadas pelos EUA em março, devem causar uma queda de 0,2% no comércio mundial de mercadorias em 2025. Esse impacto pode ser mais profundo — até 1,5% — caso a suspensão temporária termine e a escalada continue gerando incertezas nas políticas comerciais globais. A América do Norte, epicentro da medida, deve registrar recuos expressivos: 12,6% nas exportações e 9,6% nas importações.

Para países em desenvolvimento, os efeitos não são menos severos. A mesma publicação aponta que a América do Sul sofrerá retração de 0,8%, a Ásia de 1,7%, enquanto África e Oriente Médio, com estruturas produtivas mais frágeis, devem registrar crescimentos residuais de apenas 0,1%. Em regiões dependentes do comércio exterior como motor de desenvolvimento, tais números representam mais que estatísticas: são ameaças diretas à estabilidade econômica e à geração de empregos.

A guerra tarifária iniciada pelos EUA tem potencial para prejudicar não apenas o próprio país, mas o mundo inteiro. A construção de uma nova era de unilateralismo americano pode romper o multilateralismo que os próprios EUA ajudaram a instituir no século passado, abrindo espaço para fragmentações e riscos globais.

Somadas, a fragilidade da ONU, a ineficiência da OMC e as ações unilaterais, cria-se ambiente de instabilidade que pode culminar tanto em rupturas econômicas quanto em conflitos armados. Quando a cooperação internacional falha, cresce o sentimento de insegurança — e, com ele, o risco de decisões motivadas pelo medo ou pela desconfiança. O multilateralismo, como o conhecemos, está sob ataque — e precisa ser renovado com urgência.

Uma janela de oportunidade estratégica

Diante desse cenário de esgotamento, o BRICS se apresenta como uma alternativa concreta para a reestruturação das instituições e organismos internacionais. A atual crise, ainda que preocupante, também abre espaço para uma reconfiguração mais justa da governança global — e o BRICS emerge como ator central nesse processo de transformação.

De acordo com a Nota da Presidência brasileira do BRICS, o fórum está comprometido com uma ordem multipolar equitativa, justa, democrática e equilibrada. O agrupamento chega ao Rio de Janeiro, em julho, sob a presidência brasileira para sua XVII Cúpula, guiados pelo lema “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável”, o Brasil propõe concentrar atenção política, dentre outras quatro áreas, nas discussões sobre a Reforma da Arquitetura Multilateral de Paz e Segurança e no Comércio, Investimentos e Finanças. 

No campo político, ações recentes reforçam esse papel. Brasil e China propuseram uma iniciativa conjunta de paz para o conflito na Ucrânia. Os Emirados Árabes Unidos atuaram como mediadores na libertação de prisioneiros. A Arábia Saudita lançou a Aliança Global pela Solução de Dois Estados. E, em março, representantes do BRICS e do Oriente Médio reafirmaram, em Brasília, o compromisso com uma solução pacífica e com base no direito internacional para o conflito israelo-palestino. Esses gestos mostram um grupo comprometido com o diálogo e a diplomacia.

Esses exemplos evidenciam o engajamento do grupo com a promoção da paz e da segurança internacionais por meio da diplomacia e da cooperação. Apesar das diferenças internas, o BRICS tem demonstrado capacidade de convergência em pautas centrais, especialmente quando se trata da defesa do multilateralismo, do diálogo e do fortalecimento da voz do Sul Global.

No campo econômico, o grupo defende uma revisão da governança das instituições de Bretton Woods — como o FMI, o Banco Mundial e a Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA, na sigla em inglês) — de modo a garantir maior representatividade para os países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, busca consolidar os próprios instrumentos financeiros criados dentro do bloco: o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), que atua no financiamento de projetos sustentáveis e de infraestrutura, e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), pensado para oferecer suporte aos membros em momentos de pressão cambial. A presidência brasileira também propôs que o BRICS avance na construção de um posicionamento comum sobre o papel da Organização Mundial do Comércio (OMC), reforçando o compromisso coletivo com um sistema de comércio global mais equilibrado, transparente e aberto, que valorize o multilateralismo econômico como base para o desenvolvimento.

O NDB, fundado em 2014, já apresenta resultados sólidos. Segundo o relatório Evaluation Lens (dez/2024), quase todos os 11 projetos avaliados receberam notas “fortemente satisfatórias” em impacto, sustentabilidade e eficiência — mostrando que é possível criar instituições eficazes fora dos centros tradicionais de poder.

BRICS como proposta de futuro

Diante do cenário global, a presidência brasileira do BRICS propõe caminhos concretos para um multilateralismo mais justo. Ao alinhar suas ações aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o grupo demonstra que não se trata apenas de defender o Sul Global, mas de oferecer soluções globais fundadas na equidade, na cooperação e na responsabilidade compartilhada.

A guerra tarifária imposta pelos EUA evidencia os limites de um sistema que, diante das crises, falha em coordenar soluções. O Conselho de Segurança segue paralisado. Nesse vácuo, o BRICS não se coloca como oposição, mas como alternativa realista. Suas propostas de reforma da ONU, modernização da governança econômica e fortalecimento institucional apontam para um novo multilateralismo: mais inclusivo, eficaz e conectado com os desafios do século XXI.

Enquanto alguns erguem muros, o BRICS constrói pontes. A disputa está em curso — e seu desfecho pode definir o futuro da ordem internacional. Cabe aos emergentes, como o BRICS, liderar a transição para um sistema em que todos tenham voz e lugar na mesa das decisões globais.

Referências

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Daniel Henrique Diniz
Redator-Chefe na Cosmopolíticos
Graduando em Relações Internacionais - UEPB
danielhenriquediniz2022@gmail.com